Por Sérgio Lucena Mendes, biólogo, professor de Zoologia e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza
No final do século XVII, o médico português João Ferreira da Rocha foi enviado a Pernambuco para tratar os doentes da febre amarela e publicou, em 1694, o primeiro tratado sobre a doença. Ele descreveu com precisão os sintomas e sugeriu uma série de tratamentos, alguns duvidosos, é claro, diante da medicina atual.
O que já se sabe desde aquela época é que a doença causa febre, calafrios, náuseas, vômito, dores de cabeça e musculares em quem é picado pelo mosquito transmissor e contaminado pelo vírus. A versão mais severa pode levar à hemorragia e morte e, apesar de não existir cura, nós humanos contamos com a prevenção por meio de vacina. No entanto, os demais primatas, nossos parentes mais próximos na natureza, não têm a mesma sorte nem a mesma resistência.
Até o final de março deste ano, o Ministério da Saúde confirmou 187 casos de óbitos em humanos causados pela doença. No mesmo período, 4.240 mortes de macacos foram confirmadas e associadas à febre amarela no Brasil, sendo que só no Espírito Santo já foram cerca de 1.200. A situação também é grave em Minas Gerais e há registros de mortes de macacos confirmadas para a febre em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Goiás, Distrito Federal, Pará e Roraima. Esse surto já pode ser considerado um desastre ambiental grave por se tratar de uma das maiores mortandades de primatas da história da Mata Atlântica, de acordo com a Sociedade Brasileira de Primatologia.
Devido ao grande número de casos, alguns estados pararam de notificar as baixas em primatas há algum tempo, mas o surto não dá sinais de enfraquecimento. Muito pelo contrário. É possível que, em breve, grande parte da porção de Mata Atlântica, que abrange a costa do Brasil – do Rio Grande do Sul até Pernambuco e Paraíba – seja afetada pelo vírus que provoca uma taxa de até 90% de mortes em algumas espécies de primatas.
Apesar de ocorrer ciclicamente no Brasil, geralmente de dezembro a maio, a febre amarela avançou de forma inesperada nesse surto atual. Sua chegada ao litoral do Espírito Santo, Bahia e Rio de Janeiro é algo considerado inédito e que pode acarretar perdas irreparáveis. Os bugios (Alouatta guariba) têm morrido em massa, mas outras espécies também têm sido muito afetadas, como o sauá (Callicebus personatus). Os moradores do Espírito Santo, que residem em áreas próximas às florestas, relatam um triste silêncio. Não há mais o rugido característico do bugio que indicava sua presença. Os saguis do gênero Callithrix e macacos-pregos (Supajus sp) também foram afetados. O perigo ronda ainda o muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthus), maior primata das Américas e criticamente em perigo de extinção. O novo grande temor é com a chegada da febre amarela na região de Casimiro de Abreu, no Rio de Janeiro. O local é o último refúgio do mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia), que sofreu com o desmatamento e tráfico de animais, e agora vai ter que enfrentar um novo inimigo.
Apesar de o vírus e a doença serem os mesmos, há dois tipos de ciclos, o silvestre e o urbano. A diferença está no transmissor: o ciclo silvestre é transmitido por dois tipos de mosquito (dos gêneros Haemagogus e Sabethes) restritos à área de florestas. O ciclo urbano é causado pelo velho conhecido Aedes aegypti, transmissor também de viroses como a dengue, chikungunya e zika. O ciclo urbano pode se estabelecer caso uma pessoa não imunizada se contamine numa área de floresta e depois seja picada na cidade pelo Aedes aegypti e este vier a se infectar. Os macacos, evidentemente, são apenas vítimas da doença e não os seus transmissores.
O desenvolvimento da doença é facilitado pela redução das áreas silvestres e consequente avanço das cidades. Quando adicionamos outros fatores, como mudança climática, por exemplo, a equação se torna ainda mais complicada. Desde a década de 1980, a Organização Mundial da Saúde registra aumento no número de casos de febre amarela e acredita-se que o crescimento da população urbana, com maior mobilidade global e as alterações no clima do planeta sejam possíveis explicações para o fato. Da mesma forma que a doença que aflige homens e macacos é a mesma, as causas e suas consequências também não podem ser dissociadas.
O alerta e o controle do surto atual foram extremamente tardios e antiquados para todos os envolvidos. Houve descaso com relação às primeiras mortes de macacos reportadas em Montes Claros (MG) e somente quando centenas deles estavam morrendo no leste de Minas Gerais é que decidiu-se tomar alguma atitude. O Espírito Santo se alarmou com a situação do estado vizinho e adiantou a vacinação em humanos. No Rio de Janeiro houve um bloqueio vacinal nas fronteiras do estado, o que simplesmente não funciona. Além de não impedir o surto silvestre, já que macacos não participam da vacinação, também não resolve o surto urbano, pois pessoas vão e vêm de diferentes áreas a todo momento. É impossível lidar com situações inéditas como essa, utilizando métodos que já eram duvidosos há quase um século.
É preciso ver o surto com um olhar ecológico, além da preocupação com a saúde humana. O controle da febre amarela inclui, necessariamente, a preservação dos habitats naturais e suas espécies nativas. Desflorestar e matar macacos não impede a circulação do vírus da doença e pode até piorar a situação. A redução drástica da população de macacos causa um grande desequilíbrio natural, pois eles participam de vários processos ecológicos, além de agirem como sentinelas da doença, ao demonstrar mais facilmente a presença do vírus da febre amarela na região.
O vírus da febre amarela com certeza evoluirá mata adentro, dizimando macacos de diferentes espécies, sem respeitar fronteiras ou delimitações feitas pelo homem. No que tange à saúde humana, podemos contar com a vacina, mas não existe cura e as medidas de controle dessa virose não têm surtido o efeito necessário, o que nos remete ao século XVII, quando a doença foi registrada no Brasil. Protegemos humanos, mas não podemos esquecer que não somos os únicos a habitar o planeta e que não sobrevivemos sozinhos. A saúde humana está intimamente relacionada à saúde do meio ambiente.
Com o avanço do outono e queda das temperaturas é provável que o surto de febre amarela se enfraqueça, mas pode ser que ressurja no fim do ano. De qualquer forma, o futuro dos nossos primatas, principalmente das espécies da Mata Atlântica, é incerto. Ainda não temos a dimensão exata do impacto que estão sofrendo agora, tampouco sabemos as consequências dessa virose nas populações naturais em longo prazo.
O que já se sabe desde aquela época é que a doença causa febre, calafrios, náuseas, vômito, dores de cabeça e musculares em quem é picado pelo mosquito transmissor e contaminado pelo vírus. A versão mais severa pode levar à hemorragia e morte e, apesar de não existir cura, nós humanos contamos com a prevenção por meio de vacina. No entanto, os demais primatas, nossos parentes mais próximos na natureza, não têm a mesma sorte nem a mesma resistência.
Até o final de março deste ano, o Ministério da Saúde confirmou 187 casos de óbitos em humanos causados pela doença. No mesmo período, 4.240 mortes de macacos foram confirmadas e associadas à febre amarela no Brasil, sendo que só no Espírito Santo já foram cerca de 1.200. A situação também é grave em Minas Gerais e há registros de mortes de macacos confirmadas para a febre em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Goiás, Distrito Federal, Pará e Roraima. Esse surto já pode ser considerado um desastre ambiental grave por se tratar de uma das maiores mortandades de primatas da história da Mata Atlântica, de acordo com a Sociedade Brasileira de Primatologia.
Devido ao grande número de casos, alguns estados pararam de notificar as baixas em primatas há algum tempo, mas o surto não dá sinais de enfraquecimento. Muito pelo contrário. É possível que, em breve, grande parte da porção de Mata Atlântica, que abrange a costa do Brasil – do Rio Grande do Sul até Pernambuco e Paraíba – seja afetada pelo vírus que provoca uma taxa de até 90% de mortes em algumas espécies de primatas.
Apesar de ocorrer ciclicamente no Brasil, geralmente de dezembro a maio, a febre amarela avançou de forma inesperada nesse surto atual. Sua chegada ao litoral do Espírito Santo, Bahia e Rio de Janeiro é algo considerado inédito e que pode acarretar perdas irreparáveis. Os bugios (Alouatta guariba) têm morrido em massa, mas outras espécies também têm sido muito afetadas, como o sauá (Callicebus personatus). Os moradores do Espírito Santo, que residem em áreas próximas às florestas, relatam um triste silêncio. Não há mais o rugido característico do bugio que indicava sua presença. Os saguis do gênero Callithrix e macacos-pregos (Supajus sp) também foram afetados. O perigo ronda ainda o muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthus), maior primata das Américas e criticamente em perigo de extinção. O novo grande temor é com a chegada da febre amarela na região de Casimiro de Abreu, no Rio de Janeiro. O local é o último refúgio do mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia), que sofreu com o desmatamento e tráfico de animais, e agora vai ter que enfrentar um novo inimigo.
Apesar de o vírus e a doença serem os mesmos, há dois tipos de ciclos, o silvestre e o urbano. A diferença está no transmissor: o ciclo silvestre é transmitido por dois tipos de mosquito (dos gêneros Haemagogus e Sabethes) restritos à área de florestas. O ciclo urbano é causado pelo velho conhecido Aedes aegypti, transmissor também de viroses como a dengue, chikungunya e zika. O ciclo urbano pode se estabelecer caso uma pessoa não imunizada se contamine numa área de floresta e depois seja picada na cidade pelo Aedes aegypti e este vier a se infectar. Os macacos, evidentemente, são apenas vítimas da doença e não os seus transmissores.
O desenvolvimento da doença é facilitado pela redução das áreas silvestres e consequente avanço das cidades. Quando adicionamos outros fatores, como mudança climática, por exemplo, a equação se torna ainda mais complicada. Desde a década de 1980, a Organização Mundial da Saúde registra aumento no número de casos de febre amarela e acredita-se que o crescimento da população urbana, com maior mobilidade global e as alterações no clima do planeta sejam possíveis explicações para o fato. Da mesma forma que a doença que aflige homens e macacos é a mesma, as causas e suas consequências também não podem ser dissociadas.
O alerta e o controle do surto atual foram extremamente tardios e antiquados para todos os envolvidos. Houve descaso com relação às primeiras mortes de macacos reportadas em Montes Claros (MG) e somente quando centenas deles estavam morrendo no leste de Minas Gerais é que decidiu-se tomar alguma atitude. O Espírito Santo se alarmou com a situação do estado vizinho e adiantou a vacinação em humanos. No Rio de Janeiro houve um bloqueio vacinal nas fronteiras do estado, o que simplesmente não funciona. Além de não impedir o surto silvestre, já que macacos não participam da vacinação, também não resolve o surto urbano, pois pessoas vão e vêm de diferentes áreas a todo momento. É impossível lidar com situações inéditas como essa, utilizando métodos que já eram duvidosos há quase um século.
É preciso ver o surto com um olhar ecológico, além da preocupação com a saúde humana. O controle da febre amarela inclui, necessariamente, a preservação dos habitats naturais e suas espécies nativas. Desflorestar e matar macacos não impede a circulação do vírus da doença e pode até piorar a situação. A redução drástica da população de macacos causa um grande desequilíbrio natural, pois eles participam de vários processos ecológicos, além de agirem como sentinelas da doença, ao demonstrar mais facilmente a presença do vírus da febre amarela na região.
O vírus da febre amarela com certeza evoluirá mata adentro, dizimando macacos de diferentes espécies, sem respeitar fronteiras ou delimitações feitas pelo homem. No que tange à saúde humana, podemos contar com a vacina, mas não existe cura e as medidas de controle dessa virose não têm surtido o efeito necessário, o que nos remete ao século XVII, quando a doença foi registrada no Brasil. Protegemos humanos, mas não podemos esquecer que não somos os únicos a habitar o planeta e que não sobrevivemos sozinhos. A saúde humana está intimamente relacionada à saúde do meio ambiente.
Com o avanço do outono e queda das temperaturas é provável que o surto de febre amarela se enfraqueça, mas pode ser que ressurja no fim do ano. De qualquer forma, o futuro dos nossos primatas, principalmente das espécies da Mata Atlântica, é incerto. Ainda não temos a dimensão exata do impacto que estão sofrendo agora, tampouco sabemos as consequências dessa virose nas populações naturais em longo prazo.