Por André Giamberardino, professor de Direito da Universidade Positivo (UP) e defensor público estadual
O Supremo Tribunal Federal confirmou, em 5 de outubro, a mudança de posicionamento de fevereiro deste ano, autorizando o início da execução da pena após decisão de segunda instância. A questão tem provocado manifestações contundentes a favor e contra, dando-se a Constituição da República como sepultada e o princípio da presunção de inocência fulminada por seu próprio guardião.
Estou ao lado dos que entendem a decisão do STF como indefensável do ponto de vista dos limites necessários à interpretação de texto. Sequer é preciso tocar no mérito da questão: pode até ser razoável estabelecer a possibilidade de início da execução da pena antes de se aguardar o efetivo decurso do tempo para julgamento de todos os recursos possíveis, mas não é o que está escrito. A redação dos dispositivos da Constituição e do Código de Processo Penal é cristalina e taxativa, não deixando espaços para outra interpretação que não aquela anteriormente adotada, sob pena de se confundir hermenêutica com poder constituinte.
Segundo dados da Defensoria Pública de São Paulo, 64% das decisões do Tribunal de Justiça daquele Estado com recurso da Defensoria tem a decisão reformada pelos Tribunais Superiores. De acordo com a Defensoria do Rio de Janeiro, no mesmo sentido, 41% de seus recursos no STJ tem resultado positivo. Caso uma das milhares de pessoas atingidas fique presa por um dia a mais que o necessário, há dúvidas sobre a necessidade de indenização, maximizando ainda mais o prejuízo ao Estado e à sociedade?
De todo modo, parece exagerada a reação que afirma, só agora, a morte do princípio da presunção de inocência quando ela, para a imensa maioria do público vulnerável que enche as masmorras de nosso sistema penitenciário, jamais existiu efetivamente, graças à banalização do uso da prisão cautelar e ao baixíssimo rigor na análise das provas quando se julga os crimes ligados ao cenário da violência urbana. O Brasil é um dos países que mais pune no mundo – e essa é uma afirmação empiricamente demonstrável – no qual mais de um terço de sua população carcerária é provisória, o que significa que não tem sequer a sentença de primeira instância.
O sistema penal brasileiro não pode ser simbolicamente representado ou politicamente pensado a partir da justiça federal. É um gravíssimo equívoco trasladar percepções próprias de seu âmbito para o mundo maior das justiças penais estaduais, nas quais “impunidade” é um termo incompreensível, senão cínico, e onde o sistema penal não passa de uma máquina de massacrar pobres, a maioria presos desde o início do processo.
A decisão recente de nossa Suprema Corte explicita, mais a fundo, o delicado tempo de erosão de princípios liberais em que vivemos. Tempo de um debate político tão inacreditavelmente raso a ponto de se acusar de “bolivariano” quem defende nada além das garantias fundamentais oriundas do liberalismo político! Tempo, enfim, de constatar como as mesmas portas que se abrem para a declaração tardia de óbito da presunção de inocência permanecem escancaradas para a banalização da violência institucional, para a violação de sigilo telefônico de jornalistas, para propostas como a admissão de provas ilícitas “desde que colhidas de boa-fé”, entre outras tantas ideias que circulam com força e prestígio. Um museu de grandes novidades que nos faz procurar e perguntar onde estaria a nossa Bastilha. Ela precisa, ainda, ser derrubada.