*Por Carmem Murara
A recente sanção da Lei Complementar nº 214/2025, que regulamenta a reforma tributária aprovada no ano passado, trouxe mudanças profundas ao sistema tributário brasileiro. Entre os principais pontos, destacam-se a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), da Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e do Imposto Seletivo (IS). No entanto, a nova legislação também gerou um ponto de atenção para as entidades filantrópicas, que ficaram de fora da compensação de créditos tributários — um direito garantido às demais cadeias produtivas. Essa exclusão pode comprometer seriamente o funcionamento dessas instituições e, consequentemente, o atendimento prestado à população.
Vale lembrar que a imunidade tributária está preservada, até porque trata-se de uma cláusula pétrea da Constituição. Portanto, as filantrópicas certificadas com o Certificado Beneficente de Assistência Social (CEBAS) estão imunes à CBS que substitui o PIS e à Cofins. No entanto, a impossibilidade de compensação de créditos tributários representa um aumento nos custos operacionais dessas instituições, colocando em risco sua sustentabilidade.
Impacto nos hospitais filantrópicos
A ausência do direito ao creditamento faz com que hospitais filantrópicos e Santas Casas, responsáveis pelo atendimento de milhões de brasileiros no Sistema Único de Saúde (SUS), arquem com custos maiores na aquisição de equipamentos e contratação de serviços essenciais, pois não terão direito à compensação de créditos. Para ilustrar esse problema, basta observar o impacto sobre a compra de um tomógrafo. Tanto um hospital filantrópico quanto um hospital privado pagariam o mesmo valor pelo equipamento, mas, enquanto o hospital privado pode compensar os impostos por meio de créditos tributários, a instituição filantrópica não tem essa possibilidade. O resultado? O tomógrafo se torna mais caro para o hospital que atende majoritariamente pelo SUS do que para o hospital particular.A
Um estudo da Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos (CMB) publicado pela Femipa indica que essa mudança possa elevar os custos dessas entidades em até 27%, criando um descompasso que contraria o princípio da neutralidade tributária, um dos pilares da reforma. Além disso, o impacto no orçamento público é direto, uma vez que mais de 50% dos atendimentos de média complexidade e 65% dos atendimentos de alta complexidade do SUS são realizados por hospitais filantrópicos. Ou seja, ao encarecer sua operação, o governo indiretamente compromete a qualidade e a viabilidade desses serviços.
Ao longo de 2024, o setor filantrópico, por meio de entidades como o Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas (FONIF), realizou intensas articulações para demonstrar aos parlamentares os riscos dessa medida. Muitos compreenderam a gravidade da situação e a necessidade de ajustes, mas, infelizmente, não houve força política suficiente para reverter esse cenário antes da aprovação da lei.
Agora, o desafio é construir alternativas para mitigar os impactos da reforma. O FONIF e outras entidades representativas estão analisando estratégias para sensibilizar o Congresso sobre a importância de garantir o direito à compensação de créditos tributários às instituições filantrópicas. Uma das possibilidades é a proposição de um novo projeto de lei que corrija essa desigualdade e assegure condições justas para essas entidades.
Risco para a filantropia no Brasil
A Lei Complementar nº 214/2025 trouxe avanços, mas também desafios que precisam ser enfrentados. A exclusão das entidades filantrópicas na compensação de créditos tributários representa uma ameaça concreta à sua sustentabilidade e, por consequência, ao acesso da população a serviços essenciais, especialmente na área da saúde.
Caso a legislação permaneça como está, muitas entidades poderão enfrentar dificuldades, chegando até mesmo a encerrar suas atividades. Isso não representa apenas um problema para as instituições, mas para toda a sociedade, sobretudo para os milhões de brasileiros que dependem dos serviços públicos oferecidos por essas entidades. O aumento da carga tributária sem a devida compensação pode resultar na redução de atendimentos, na limitação dos investimentos em infraestrutura e na piora da qualidade dos serviços prestados.
É fundamental que o poder público reconheça a relevância e a contribuição das instituições filantrópicas certificadas pelo CEBAS, garantindo que possam continuar cumprindo seu papel social sem sofrer penalizações. A reforma tributária foi aprovada com o objetivo de simplificar e tornar o sistema mais eficiente, mas, ao deixar de fora as filantrópicas da compensação de créditos tributários, acabou criando uma distorção que precisa ser corrigida.
Portanto, é urgente que o Congresso e o governo federal revisitem essa questão e encontrem uma solução que preserve a viabilidade dessas instituições. A sociedade depende disso. O direito à saúde, à educação e à assistência social não pode ser comprometido por uma falha na reforma tributária. Agora, mais do que nunca, é hora de unir esforços para garantir que a filantropia continue sendo um pilar essencial do bem-estar coletivo no Brasil.
*Carmem Murara é diretora de Relações Institucionais e Governamentais do Grupo Marista e diretora de Comunicação do Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas.